g1 -24/07/2021 21:41
Com ao menos dois meses de período seco ainda pela frente,
pelo menos oito cidades nas regiões Sul e Sudeste já estão limitando a oferta
de água à população para lidar com a baixa dos reservatórios.
Estão sendo implantados esquemas de rodízio de água em Curitiba (PR), Santo
Antônio do Sudoeste (PR), Pranchita (PR), Itu (SP), Salto (SP), São José do Rio
Preto (SP), Bauru (SP) e Bagé (RS).
Em Curitiba, que está
sob racionamento desde março de 2020, órgãos estaduais chegaram a contratar
aviões para induzir precipitações sobre a cidade.
As medidas emergenciais são adotadas enquanto muitos
reservatórios nas regiões Sul e Sudeste registram seus menores índices em
várias décadas.
O quadro afeta tanto a distribuição de água quanto a
produção de eletricidade, pois as hidrelétricas respondem por cerca de 60% da
capacidade de geração do país.
Com os reservatórios das usinas também em baixa, o governo
recorre a termelétricas, que são mais caras, elevando o preço da energia para
os consumidores.
E o cenário tende a se agravar, já que o período chuvoso não
costuma se iniciar antes de outubro.
Em maio, o Sistema Nacional de Meteorologia (SNM) emitiu um
alerta de emergência hídrica para a região hidrográfica da Bacia do Paraná
entre junho e setembro de 2021.
Ações de curto e longo prazo
Várias cidades já têm adotado medidas pontuais para lidar
com a crise — como obras em reservatórios e a busca por outras fontes de água.
Em Curitiba, a companhia paranaense de saneamento testou um
método ainda pouco usado no Brasil.
Um avião passou a borrifar água em nuvens para induzir
precipitações nos reservatórios da cidade. A empresa não informou se a
estratégia teve sucesso.
Para Angelo Lima, secretário-executivo do Observatório da
Governança das Águas — entidade formada por 60 instituições e 17 pesquisadores
que acompanham a gestão hídrica no Brasil —, o cenário exige ações tanto
emergenciais quanto de médio a longo prazo.
Ele diz que, no curto prazo, os órgãos que compõem o Sistema
Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, como os comitês de bacias
hidrográficas, deveriam se reunir para debater soluções para a crise.
As medidas emergenciais, segundo Lima, devem garantir a
oferta de água para a população e para a alimentação de animais — ações que
devem ser priorizadas em situação de escassez, conforme determina a Lei das
Águas, de 1997.
No entanto, no fim de junho, o governo federal publicou uma
Medida Provisória (MP) que dá ao Ministério
de Minas e Energia peso maior de decisão sobre as ações a serem
tomadas para lidar com a crise hídrica.
A MP 1055 tem como fim "garantir a continuidade e a
segurança do suprimento eletroenergético no país".
A medida criou um grupo interministerial, chefiado pelo
Ministério de Minas e Energia, para coordenar a resposta do governo à crise.
Para Lima, ao colocar o Ministério de Minas e Energia na
liderança do grupo, o governo sinaliza que priorizará a geração de
eletricidade, o que pode prejudicar ainda mais o abastecimento da população.
Ele afirma que nem mesmo a Agência Nacional de Águas (ANA), órgão federal responsável
por regular os serviços de abastecimento, foi colocada no grupo.
A composição do grupo pode ter cálculo eleitoral.
Analistas consideram que um apagão no sistema elétrico brasileiro seria uma
grande ameaça à candidatura de Jair Bolsonaro à
reeleição.
Lima afirma, porém, que o setor elétrico não aprendeu com
crises anteriores e deixou de adotar medidas que poderiam atenuar a emergência
atual, como aprimorar a rede de distribuição para reduzir as perdas de energia.
Em 2019, segundo um relatório da Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel), as
perdas representaram 13,8% de toda energia consumida.
Metade das perdas se deveu a falhas técnicas, e a outra
metade, a furtos (ligações clandestinas e desvios da rede).
O índice de perdas tem se mantido estável nas últimas
décadas. Em 2008, segundo a Aneel, as perdas respondiam por 13,6% da energia
consumida.
Conflitos por água
Angelo Lima diz que também são necessárias medidas para
garantir a oferta de água no médio e longo prazo.
Uma das ações prioritárias, segundo Lima, é zerar o
desmatamento na Amazônia para
assegurar a manutenção do fenômeno conhecido como "rios voadores".
O fenômeno se deve à água que as árvores da floresta
bombeiam na atmosfera por meio da evapotranspiração. Segundo
especialistas, parte dessa água se transforma em chuva e ajuda a irrigar o
centro-sul do Brasil.
Conforme a floresta é derrubada, no entanto, os
"rios voadores" escasseiam, reduzindo as chuvas ao sul do bioma. Lima
defende ainda a preservação das florestas no próprio centro-sul do país — neste
caso, para garantir o bom funcionamento do sistema hídrico local.
Quando a floresta está preservada, diz ele, a água das
chuvas tende a infiltrar o solo e a alcançar depósitos subterrâneos, os lençóis
freáticos e aquíferos.
São esses depósitos que alimentam as nascentes dos rios
durante o ano todo, inclusive no período seco.
Já quando a floresta é derrubada, e o solo fica
desprotegido, a água tem mais dificuldade para penetrar o solo, o que dificulta
a recarga dos depósitos e diminui a vazão dos rios na seca.
Outra ação importante, diz Lima, é despoluir rios e
cuidar de suas margens para evitar assoreamento.
O caso de duas cidades hoje sob racionamento mostra como
essas ações poderiam ter impactos benéficos.
Itu e Salto são
atravessadas pelo Tietê, um dos maiores rios de São Paulo. Mas, como o rio
chega às duas cidades poluído por dejetos despejados em sua maioria na Grande
São Paulo, o aproveitamento das águas para o abastecimento público fica
prejudicado.
O que leva a outro ponto importante: para Lima, a gestão das
águas (e dos rios) deve ser feita de modo integrado.
Cidades que poluem um rio prejudicam não só seus moradores,
como também os que estão rio abaixo. Por isso todas as prefeituras deveriam se
sentar à mesma mesa para discutir como gerenciá-lo, diz ele.
Lima afirma que já existem instâncias aptas a lidar com
questões desse tipo e mediar conflitos por água: os comitês de bacias
hidrográficas.
Os comitês reúnem representantes da comunidade e do poder
público (inclusive prefeituras) para deliberar sobre a gestão das águas em cada
bacia.
Porém, Lima afirma que muitas vezes faltam recursos para
implantar as ações definidas pelos grupos.
"Acredito que a gente precisa discutir a garantia de um
orçamento mínimo para esses órgãos, assim como já existe para a Saúde e a
Educação", defende.
Também é importante, segundo ele, que a questão hídrica se
torne uma agenda política permanente — e não só nos períodos de escassez.
Lima afirma que, se o país continuar a empurrar o problema
com a barriga, os conflitos por água tendem a se agravar — especialmente à
medida que as mudanças climáticas mudarem os padrões de chuvas no país, como
previsto.
O número de conflitos já está em alta. Em 2020, segundo um
relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), havia 350 conflitos por água no
país.
O número é quase cinco vezes maior do que em 2011 (68),
quando o órgão começou a monitorar o tema.