Delação premiada: questão de ética ou de moral?

ademar gomes -05/09/2017 16:25

Diariamente pelos noticiários de jornal, televisão e até mesmo nas redes sociais, me deparo com calorosos debates sobre o instituto da delação premiada. Pensando nesse assunto, voltei no tempo até o ano de 1970 e me transportei à época dos cursinhos preparatórios para o vestibular, necessários para o ingresso à faculdade, uma vez que o número de candidatos era bem superior ao de vagas.

Naquela ocasião, li um livro que contava a história de um negro norte-americano que, preso, estava prestes a ser julgado. As provas existentes no processo eram muito fracas para lhe garantir uma absolvição, mas demasiadamente fortes e contundentes para condená-lo.

Embora a vontade dele fosse confessar o crime para escapar da pena de morte ? uma opção permitida pela lei, seu advogado, famoso por colecionar grandes vitórias e muito respeitado entre seus pares por seu notório conhecimento jurídico, talvez, por vaidade pessoal, orientou seu cliente a negar o crime, pois, se confessasse, em razão da sistemática legal lá vigente, escaparia da pena de morte e seria condenado no máximo à prisão perpétua, enquanto que, negando o crime, poderia ser absolvido e  safar-se da pena capital.

A questão difícil e sempre debatida é a seguinte:

Pode o advogado pleitear a inocência de um acusado que quer confessar seu crime? Ou então: pode o advogado direcionar e decidir a estratégia que acha ideal para seu cliente, negando a autoria do crime, mesmo sabedor que as provas são contundentes e podem ensejar a pena de morte para seu cliente caso ele não fosse absolvido?

Que o advogado tenha o dever de guardar a verdade como segredo profissional não há qualquer divergência a respeito. No entanto o mesmo não ocorre quanto à conduta a ser adotada pelo advogado quando decide que seu cliente deva negar o crime, ao invés de confessá-lo. 

Para muitos, dependendo da contundência da prova, o advogado deve aconselhar seu cliente para que confesse seu crime e, em juízo, usar dos meios de defesa compatíveis com o que a lei permite. E, se for o caso, renunciar ao mandato, em caso de discordar do cliente, sem que a sua renúncia possa ser interpretada como indício ou prova da culpabilidade do cliente. Isso porque, se o advogado que não deixar seu cliente confessar, mesmo com provas robustas de sua culpabilidade, estará tendo uma conduta fraudulenta e eticamente punível. 

Para outros, o advogado só pode aconselhar a confissão ao cliente quando esta contribuir para uma pena menor, tão certa é a condenação. Fora desse caso, um aconselhamento deste tipo seria uma traição ao segredo profissional. Entre todas as posições, creio que a menos compreendida e a mais controversa de todas é a que se refere ao instituto da delação premiada.

A discussão a respeito passou a ser polarizada quanto a sua utilização, se ética ou moral.

Muitos chegam a afirmar que a delação eleva a traição ao grau de virtude, associando criminosos e autoridades a um “pacto macabro”. Outros, afirmam que essa forma de investigação estimula a traição e se baseia no egoísmo do criminoso que quer se beneficiar, delatando os comparsas.

O fato é que ainda existe um debate ideológico em torno da delação premiada, mas que vem sendo ultrapassado em razão dos benefícios processuais que o instituto pode trazer. Principalmente porque não se trata apenas de uma delação testemunhal, pois não basta uma mera delação testemunhal, reclamando a necessidade de prova adicional às informações do colaborador.

Contrariamente ao direito penal, o direito processual penal não é estático. É bem mais dinâmico e por isso requer maiores reflexões por parte do advogado. O instituto da colaboração premiada, associado a outros mecanismos legais, tenta solucionar o anseio tanto social do Estado em punir aqueles que cometeram crimes de difícil ou impossível elucidação, fornecendo uma ferramenta contundente e eficaz.

Pensando assim, o advogado deve sempre imprimir a dinâmica correta e necessária sobre a estratégia a ser adotada.

Esta reflexão me fez lembrar novamente do livro citado no início do artigo. No final, um jornalista, no corredor da morte, pergunta ao réu condenado e que foi impedido de confessar:

- Por que você está no corredor da morte?

Em resposta ouviu:

- Estou no corredor da morte por culpa do meu advogado, a estratégia dele não deu certo. Se eu estivesse confessado eu seria condenado a prisão perpetua, mas continuaria vivo.  

*Ademar Gomes é advogado criminalista, presidente do Conselho da Acrimesp [Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de S Paulo]